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Bandido não, bon vivant.

Foto do escritor: fijobxdfijobxd

Como o baixadense se enxerga – pt. 7.


Capa do single "Riquelme", 2021. Foto: Reprodução // YouTube.
Capa do single "Riquelme", 2021. Foto: Reprodução // YouTube.

A arte sempre foi um reflexo do contexto em que é produzida, e as disparidades entre as percepções de arte em ambientes revelam algumas desigualdades. Enquanto a arte no ambiente periférico surge como uma expressão visceral da realidade, um meio de resistência e sobrevivência, essa mesma arte só é considerada, de forma legítima, como arte quando sai desses ambientes – seja literalmente, seja em seu sentido inicial. Existe uma marginalização em relação à arte urbana, devido aos contextos apresentados e seu contraste, por exemplo, com a boemia de Vinícius e Tom, ícones indiscutíveis da música brasileira no imaginário popular.


Quem decide o que é arte e o que não é? Até que ponto a noção de "arte legítima" alimenta desigualdades sociais que silenciam as vozes periféricas? Será que está sendo perpetuado um sistema que valoriza mais o lugar de onde a arte vem do que a mensagem que ela carrega?


Para ajudar a responder a essa e a outras questões, vamos analisar trechos da música “Riquelme”, do artista meritiense R.Diop. Apesar da obra de Diop ser variada em objetos de pesquisa, escolho essa em específico dada a multiplicidade de significações que o letrista traz em sua composição.


Diop na Batalha do Bilac. Foto: Divulgação // Batalha do Bilac, @tinadiores.
Diop na Batalha do Bilac. Foto: Divulgação // Batalha do Bilac, @tinadiores.

10 da boca, Riquelme

10 da boca, Riquelme

Girando grana sem porte na boca

Peixe no bolso sem capotar barca

Meus cria frente da boca

Classe Zinedine, adesivo da França no pente

Jacaré na roupa, disfarce do jaca

Terço dividindo espaço com a corrente

Puma Disc no porte

O bala da vez, Didico em 2k2 no ataque

Multiplicando bala

Cristo castigou pedras na cruz dando pedras de crack


Nessa primeira parte, além do jogo de palavras com o antigo camisa 10 do Boca Juniors, Juan Roman Riquelme, o letrista traz a quebra de expectativa logo em seguida, alegando que está confortável, mas sem o que a sociedade espera que ele esteja fazendo para conseguir esse conforto. O fato do terço dividir espaço com a corrente remete tanto ao contexto cristão que toma boa parte das vivências periféricas no Brasil, não abandonando sua fé, quanto ao estilo carregado pelo 10 da boca.


Do meu pai herdei vícios e traumas

Amor por maços e copos

Meus heróis portavam rádio e não capa

Se livravam dos problemas queimando na mala

Porra eu não sou envolvido

São relatos do que eu vejo

Histórias sobre homens mortos, sobre cachorras e motos

Minha cara fechada é ódio e não marra


Diop no videoclipe do single "Riquelme". Foto: Reprodução // YouTube.
Diop no videoclipe do single "Riquelme". Foto: Reprodução // YouTube.

Butler (2020) sugere que o julgamento de pessoas não racializadas em direção à realidade de pessoas racializadas pode ser lida como “aquilo que foi selecionado, cultivado, regulado – de fato, policiado” (BUTLER, 2020, p. 3)1. O que o artista traz nesse trecho evoca uma resistência preconceituosa de entenderem que nem todo mundo na favela oferece perigo. Essa compreensão limitada ignora todos os níveis de escassez que atingem os ambientes periféricos, ignora as vivências das pessoas que ali estão. Ignora as dores, os traumas, os medos e os perigos que todo morador de ambiente periférico passa todos os dias.


Visão

Quanto maior for a prece maior a oferenda

Tua ambição diz teu tamanho pro mundo

A carga só gira enquanto tu sustenta

Antes tu era o que come

Hoje só vale o que fuma

Menor na boca só pra tirar foto, MC’s cantando o que veem pela foto

Cês não são porra nenhuma!”


Nos primeiros versos após o refrão tocar novamente, é estabelecida uma relação entre fé, sacrifício e ambição. Se hoje pode ser seu último dia, você tem 24 horas para mudar essa realidade. O artista traz um pedaço cruel da vivência periférica, onde sobreviver passa por usar o que você tiver na hora que tiver, porque amanhã pode não ter. O amanhã pode não vir. Logo em seguida, introduz a principal contradição exposta pela letra, em minha opinião. Se antes, você era valorizado pelo que tem para repartir (ainda que não o fizesse), hoje somos valorizados pelo que temos para gastar. Quem gasta mais – independente de onde, como ou com o que – ganha status.


Fácil falar do balão que nós sobe

Foda é lembrar dos projéteis voando

Visão além dos becos onde passo

Cada esquina sangra a queda de um santo

Playboy armado no filme é só arte

Preto narrando o que vive é bandido

As Fab deixam Beira mar no chinelo

As patrícias da sul sobem e compram comigo


O artista traz aqui as mesmas situações porém em ambientes diferentes. Dependendo do contexto – local, tempo, espaço e pessoas envolvidas – no qual o produto artístico for originário, haverão diferentes visões do que está acontecendo. É por isso que o povo da periferia consegue, com vassouras e canos, enganar um helicóptero de jornal sensacionalista de um dos maiores canais do estado do Rio de Janeiro. Eles realmente não fazem ideia do que rola aqui, e, quando tem algum movimento diferente, só pode ser bandidagem.


38 graus no asfalto quente

Bucket e um 38 na cintura

Bandido não, bon vivant

Bandido não, bon vivant

Kenner no pé, cyclone de camurça

Bandido não, bon vivant

Bandido não, bon vivant

Bala voa é a mesma que rasga blusa

Bandido não, bon vivant (fé)


O letrista finaliza expondo tudo que, se em contexto diferente, talvez não seria lido como rebeldia, violência, crime ou ameaça de perigo. Reafirma diversas vezes ser bon vivant, não bandido. Vida mansa, boêmio, tal qual Vinícius, e digno de também ser chamado de referência da música brasileira através dos frutos de sua arte.


Diop na Batalha do Bilac. Foto: Divulgação // Batalha do Bilac, @tinadiores.
Diop na Batalha do Bilac. Foto: Divulgação // Batalha do Bilac, @tinadiores.

Conclusão

Bon Vivant refere-se a uma pessoa que sabe aproveitar os prazeres da vida, sendo relacionado a um menino ou um homem que nunca é afetado pela melancolia, que só pensa em viver e passar o tempo de maneira agradável, que gosta de se divertir sem ofender ninguém2. Diop nos traz a cruel conclusão de que, na dinâmica de “trabalhe com o que você tem, pois amanhã pode não ter”, por vezes será necessário fugir das normas convencionais, na desculpa do “é só por hoje, pois vou mudar o meu amanhã”.


Nessa perspectiva, o trabalho artístico e cultural feito na periferia precisa ser levado a sério, ser considerado legítimo. Este mesmo trabalho é o que serve para muitas pessoas redesenharem não só seus próprios futuros, mas também os futuros das pessoas próximas.


Refs de cria


1BUTLER, Judith. Em perigo/perigoso: racismo esquemático e paranoia branca. Educação e Pesquisa [online]. 2020, v. 46, e460100302. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-9702202046010030. Acesso em: 08 ago. 2024.


2BON Vivant. WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bon_vivant. Acesso em: 08 ago. 2024.

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