Como o baixadense se enxerga – pt. 7.

A arte sempre foi um reflexo do contexto em que é produzida, e as disparidades entre as percepções de arte em ambientes revelam algumas desigualdades. Enquanto a arte no ambiente periférico surge como uma expressão visceral da realidade, um meio de resistência e sobrevivência, essa mesma arte só é considerada, de forma legítima, como arte quando sai desses ambientes – seja literalmente, seja em seu sentido inicial. Existe uma marginalização em relação à arte urbana, devido aos contextos apresentados e seu contraste, por exemplo, com a boemia de Vinícius e Tom, ícones indiscutíveis da música brasileira no imaginário popular.
Quem decide o que é arte e o que não é? Até que ponto a noção de "arte legítima" alimenta desigualdades sociais que silenciam as vozes periféricas? Será que está sendo perpetuado um sistema que valoriza mais o lugar de onde a arte vem do que a mensagem que ela carrega?
Para ajudar a responder a essa e a outras questões, vamos analisar trechos da música “Riquelme”, do artista meritiense R.Diop. Apesar da obra de Diop ser variada em objetos de pesquisa, escolho essa em específico dada a multiplicidade de significações que o letrista traz em sua composição.

10 da boca, Riquelme
10 da boca, Riquelme
Girando grana sem porte na boca
Peixe no bolso sem capotar barca
Meus cria frente da boca
Classe Zinedine, adesivo da França no pente
Jacaré na roupa, disfarce do jaca
Terço dividindo espaço com a corrente
Puma Disc no porte
O bala da vez, Didico em 2k2 no ataque
Multiplicando bala
Cristo castigou pedras na cruz dando pedras de crack
Nessa primeira parte, além do jogo de palavras com o antigo camisa 10 do Boca Juniors, Juan Roman Riquelme, o letrista traz a quebra de expectativa logo em seguida, alegando que está confortável, mas sem o que a sociedade espera que ele esteja fazendo para conseguir esse conforto. O fato do terço dividir espaço com a corrente remete tanto ao contexto cristão que toma boa parte das vivências periféricas no Brasil, não abandonando sua fé, quanto ao estilo carregado pelo 10 da boca.
Do meu pai herdei vícios e traumas
Amor por maços e copos
Meus heróis portavam rádio e não capa
Se livravam dos problemas queimando na mala
Porra eu não sou envolvido
São relatos do que eu vejo
Histórias sobre homens mortos, sobre cachorras e motos
Minha cara fechada é ódio e não marra

Butler (2020) sugere que o julgamento de pessoas não racializadas em direção à realidade de pessoas racializadas pode ser lida como “aquilo que foi selecionado, cultivado, regulado – de fato, policiado” (BUTLER, 2020, p. 3)1. O que o artista traz nesse trecho evoca uma resistência preconceituosa de entenderem que nem todo mundo na favela oferece perigo. Essa compreensão limitada ignora todos os níveis de escassez que atingem os ambientes periféricos, ignora as vivências das pessoas que ali estão. Ignora as dores, os traumas, os medos e os perigos que todo morador de ambiente periférico passa todos os dias.
Visão
Quanto maior for a prece maior a oferenda
Tua ambição diz teu tamanho pro mundo
A carga só gira enquanto tu sustenta
Antes tu era o que come
Hoje só vale o que fuma
Menor na boca só pra tirar foto, MC’s cantando o que veem pela foto
“Cês não são porra nenhuma!”
Nos primeiros versos após o refrão tocar novamente, é estabelecida uma relação entre fé, sacrifício e ambição. Se hoje pode ser seu último dia, você tem 24 horas para mudar essa realidade. O artista traz um pedaço cruel da vivência periférica, onde sobreviver passa por usar o que você tiver na hora que tiver, porque amanhã pode não ter. O amanhã pode não vir. Logo em seguida, introduz a principal contradição exposta pela letra, em minha opinião. Se antes, você era valorizado pelo que tem para repartir (ainda que não o fizesse), hoje somos valorizados pelo que temos para gastar. Quem gasta mais – independente de onde, como ou com o que – ganha status.
Fácil falar do balão que nós sobe
Foda é lembrar dos projéteis voando
Visão além dos becos onde passo
Cada esquina sangra a queda de um santo
Playboy armado no filme é só arte
Preto narrando o que vive é bandido
As Fab deixam Beira mar no chinelo
As patrícias da sul sobem e compram comigo
O artista traz aqui as mesmas situações porém em ambientes diferentes. Dependendo do contexto – local, tempo, espaço e pessoas envolvidas – no qual o produto artístico for originário, haverão diferentes visões do que está acontecendo. É por isso que o povo da periferia consegue, com vassouras e canos, enganar um helicóptero de jornal sensacionalista de um dos maiores canais do estado do Rio de Janeiro. Eles realmente não fazem ideia do que rola aqui, e, quando tem algum movimento diferente, só pode ser bandidagem.
38 graus no asfalto quente
Bucket e um 38 na cintura
Bandido não, bon vivant
Bandido não, bon vivant
Kenner no pé, cyclone de camurça
Bandido não, bon vivant
Bandido não, bon vivant
Bala voa é a mesma que rasga blusa
Bandido não, bon vivant (fé)
O letrista finaliza expondo tudo que, se em contexto diferente, talvez não seria lido como rebeldia, violência, crime ou ameaça de perigo. Reafirma diversas vezes ser bon vivant, não bandido. Vida mansa, boêmio, tal qual Vinícius, e digno de também ser chamado de referência da música brasileira através dos frutos de sua arte.

Conclusão
Bon Vivant refere-se a uma pessoa que sabe aproveitar os prazeres da vida, sendo relacionado a um menino ou um homem que nunca é afetado pela melancolia, que só pensa em viver e passar o tempo de maneira agradável, que gosta de se divertir sem ofender ninguém2. Diop nos traz a cruel conclusão de que, na dinâmica de “trabalhe com o que você tem, pois amanhã pode não ter”, por vezes será necessário fugir das normas convencionais, na desculpa do “é só por hoje, pois vou mudar o meu amanhã”.
Nessa perspectiva, o trabalho artístico e cultural feito na periferia precisa ser levado a sério, ser considerado legítimo. Este mesmo trabalho é o que serve para muitas pessoas redesenharem não só seus próprios futuros, mas também os futuros das pessoas próximas.
Refs de cria
1BUTLER, Judith. Em perigo/perigoso: racismo esquemático e paranoia branca. Educação e Pesquisa [online]. 2020, v. 46, e460100302. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-9702202046010030. Acesso em: 08 ago. 2024.
2BON Vivant. WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bon_vivant. Acesso em: 08 ago. 2024.
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