Como o baixadense se enxerga? - pt. 4
Sempre me parece coerente lembrar do que isso aqui se trata (também pela frequência com a qual mando os textos pra cá) no começo dessas produções, porque no fundo é sobre mim. Mas, no fundo, é também sobre você, baixadense. Esses diálogos com o que a gente é, sente que é ou que pode ser, observando as letras das músicas dxs artistas que moram aqui só é possível porque estamos aqui, entende?
Se nossos corpos não estivessem ocupando este território - fisicamente, não falo de nenhum lugar de militância neste momento -, certamente dariam resultados diferentes do que temos hoje. Talvez similares, mas ainda assim diferentes. Se as pessoas que encontramos pelo caminho não formassem o que chamamos de rede de apoio, ou se minimamente não nos acolhessem quando parece que tudo vai por água abaixo, já teríamos nos rendido a sermos somente ferramentas. E ferramentas não sonham, não almejam, não evoluem: só trabalham. E quebram, eventualmente.
Dorgô e Aclor, com ajuda do I,go e com a galera da Nuvem ENT., conseguiram traduzir um pouco desse sentimento de comunidade na obra "Romance de Primavera", que foi lançada em setembro de 2023, com um audiovisual que busca mostrar um pedaço da cena cultural baixadense. Não à toa, foi indicada no Prêmio BXD IN CENA 2023, na categoria "Melhor Clipe".

Chei' de coisa pra fazer, eu aqui pensando em você
Tenho que acordar cedo, não consigo dormir
Tento botar pra fora tudo o que eu sinto
Sendo que [o que] eu sinto te faz existir
Te faz resistir
Te faz florescer
Tudo que eu fiz pra chegar aqui
E te ver nascer
Tive que correr
Disposta a sangrar
Aclor canta que o que tem dentro de si faz quem ouve existir, resistir e florescer, mas não fala necessariamente que as três coisas acontecem simultaneamente em todas as pessoas. Desse modo, existem aquelxs que recebem sua arte como incentivo (florescer), outrxs que recebem como acolhimento (resistir), e ainda outrxs que recebem como identidade, pertencimento (existir).
Eis que surge a correria no meio da poesia
Tanta coisa que as vezes embola a mente
Escreve letra no vagão, pede um beat pro irmão,
O Dorgô traz a visão de quem, geralmente, é multitarefas: de dia, CLT ou trabalho informal; à noite, artista independente. É costume ouvirmos dos mais velhos que a vida não para pra gente fazer arte, e a obra é realista quanto a isso. Porém, ressalta que é a correria que surge no meio da poesia, não o contrário: A poesia, pela lógica, é maior.
Não falo do presente pois ele é passageiro
Não falo do dinheiro pois ele é passageiro
Quando falo de mim, pergunto "qual o paradeiro?"
Pois me sinto perdido aqui no Rio de Janeiro
Existe um recurso linguístico (cujo nome me fugiu e em breve pesquisa não consegui achar, mas sugiro que procurem saber sobre) que busca a repetição das palavras em diferentes frases para, entre outros casos, enfatizar o que está sendo dito. Os dois primeiros versos nos lembram que tanto o presente quanto o dinheiro - coisas que costumeiramente são dadas pra nós como o mais precioso existente - são passageiros. Faz sentido buscar algo que seja tão frágil que possa escorrer por nossos dedos ao menor deslize? Óbvio que temos a questão da subsistência, mas a reflexão continua: Vale a pena ficar só com isso? Nos prendermos a isso? Não é assim que a gente se perde de quem é de verdade?
O último verso antes do refrão demonstra a incerteza e insegurança de quem é, ao mesmo tempo, predador e presa: correndo atrás dos próprios sonhos mas tendo sobre si a cobrança da subsistência, da sobrevivência, do comer e se vestir etc.

De janeiro a janeiro em roda cultural
De março a março deságua um slam
Toda primavera brota um sarau
E cada abraço garante um amanhã
Como sempre, o refrão nos traz a ideia central da obra. Nos dois primeiros versos, vemos que aquilo que existe, resiste e floresce tá aí o ano todo. Nesses primeiros cinco meses de 2024, por exemplo, já vimos muita coisa acontecer na cena cultural e artística baixadense: saraus, batalhas de rima, apresentações teatrais, lançamentos de gente nova, gente voltando a lançar coisa nova... enfim.
Já nos dois versos seguintes do refrão, entendemos como e porque isso acontece. A comunidade acolhe e é acolhida, xs artistas são xs espectadores e vice-versa. Quem tá no "palco", ao olhar para baixo, vê rostos baixadenses e, por que não, se vê ali também, assim como quem vislumbra o palco e as apresentações vê rostos baixadenses - dx vocalista aos instrumentistas, à produção musical, à produção do evento. O fato de nos enxergarmos - mutuamente - nestes lugares conserva a continuidade do que estamos fazendo.
Bom dia, mundo! (Bom dia, minha Baixada Fluminense!)
Diretamente de um caderno que cabe no bolso
Lembro do meu nascimento e do exato momento toda vez que esse beat eu ouço
Eu sou o futebol, o fusca,
Eu sou o pique-pega,
Eu sou banho de sol, eu sou alvo de celas,
Eu sou cada soldado que abaixou a arma na guerra,
Eu sou o professor que ensina as verdades da terra
Eu sou o pedreiro, a diarista,
Eu sou o padeiro, a colunista
Que não tá nos jornais, mas tá falando da favela
Sou cada um que habita [n]ela
Eu sou o que acontece dentro de cada viela
Eu sou o beco, eu sou a quadra e os enquadro' que rola nela
Eu sou do bem (sou)
Eu sou do mal (sou)
Isso é perspectiva, mas creiam que sou real
Mais valioso que dólar, mais valioso que euro
O sonho de jogar bola, realidade de um emprego
Eu sou o pão, eu sou o café
Sou cada guerreiro que às cinco tá de pé
Eu sou a comunidade longe de religião
Eu sou a felicidade em ter arroz e feijão
Eu sou o camelô, eu sou a arte no vagão
Eu sou o cobrador e o calote no busão
Eu sou o que nós somo', cada dia em que se vive
Eu me chamo poesia, e sou o porquê nós ainda vive'
O trecho é bem longo, mas é recheado de identificações que, no fundo, dizem uma coisa só: o artista é o que acontece ao seu redor. Sem cotidiano, não haveria arte, e por muitas vezes esquecemos que o cotidiano nem sempre é bonito - na real, quase nunca é. É entupido de imprevistos, de sapos engolidos, de impaciência da gente para com outres e de outres para conosco. É mais aflição do que risada, é mais erro do que acerto, é mais bateção de cabeça do que sossego, infelizmente.
Mas, no fim das contas: é por isso que estamos aqui. Pra bater cabeça, pra estar aflito, pra errar mais do que acertar, mas pra fazer isso em comunidade (me apoiando no clichê comum + unidade). Afinal é o abraço que garante o amanhã e ninguém se abraça por conta própria.

Conclusão
Como já falei aqui, pesquiso sobre gênero e masculinidades pelo CNPq pensando o corpo, e dessas reflexões saíram essa coluna. Dentro destes estudos, a filósofa Judith Butler (2018) diz que nos tempos de hoje, é como se estivesse sendo travada uma guerra contra a coletividade, ou a habilidade de nós, o povo, lutarmos não pelo outro, e sim ao lado do outro. Isso acarretaria nos moldarmos em nossa resistência para, além de acabar com esta guerra, nos certificarmos de que todes estarão sendo contemplados no caso de uma vitória nela (BUTLER, 2018, p. 78).[1]
Romance de Primavera é, pessoalmente falando, um lembrete de que, apesar do fato de que se essa guerra terminasse hoje estaríamos condenades, estamos lutando o bom combate. A gente precisa mostrar esse lembrete pra mais gente. Seja aquelx que leva o abraço que garante o amanhã.
Refs de cria:
[1] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia / Judith Butler; tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla Rodrigues. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, pp. 77-112.
Estou emocionado com esse texto🧡