Como o baixadense se enxerga? - pt. 6

Sendo um artista independente baixadense, sei bem das dificuldades que se colocam entre nossa vida e o conforto – não digo sucesso porque não precisamos de fama, nem é isso que queremos: o objetivo sempre foi viver bem e só. No entanto, esse sucesso só vem de formas não muito relacionadas com a qualidade de nosso trabalho, nem mesmo com a quantidade de conteúdo que produzimos. Na maioria das vezes, as pessoas estiveram nos lugares certos, na hora certa e com as pessoas corretas. Não é segredo para ninguém que chegar em locais de destaque sem padrinhos ou madrinhas é infinitamente mais difícil.
Desse modo, o que acontece com a psiquê de um/a/e artista baixadense quando, apesar de tudo isso, apesar da qualidade enorme de seu trabalho, da coesão de sua vida artística, dos festivais e eventos nos quais foi chamade para se apresentar... Quando deixa de viver sua vida particular para viver sua arte e ainda assim as coisas não parecem mudar?
Para debater acerca destas (e outras) questões, vamos olhar hoje para a faixa “Xanny”, de 2021, do neoiguaçuano Zeca Passarinho. “Xanny” é uma corruptela de Xanax, um antidepressivo também conhecido como Alprazolam.

Xanny, agora eu tô bem, yeah, yeah
Xanny, white bitch quer Xann-yeah, yeah
Gang, busco a minha gang
Mano, eu só quero notas de cem, yeah, yeah
No refrão, o artista diz que agora sim está bem, porque conseguiu o tal do "Xanny". Junto com este, a atenção de pessoas fora do círculo social do artista vem junto, o que parece acenar para um prestígio artístico maior para quem usa algum tipo de entorpecente. Este trecho deixa claro o objetivo após o uso da droga: dinheiro. Deixou de ser sobre fazer arte, deixou de ser sobre fazer sucesso: é sobre ter a grana. Este ideal continua a ser propagado pelo restante da faixa.
Sujando o Jordan em ruas reais
Estou focado apenas nos reais
Nubank, cashback,
Giros, streams lá no Spotify
Mais uma vez, a busca incessante por reconhecimento de seu trabalho, que beira a obsessão, dá resultado não em projeção artística, mas sim em números: números na conta bancária, números nas redes sociais, números nas plataformas de streaming. Hoje, a arte independente está sujeita a algoritmos - que nunca trabalharão ao nosso lado -, de modo que quem quer de fato fazer arte se vê preso entre fazer como gostaria e fazer como o mercado gosta. "Viver de arte já foi sonho, hoje é só martírio" é trecho da faixa que inaugura esses estudos, e você pode ler o estudo aqui.
Meu nome na boca de toda minha city
Alguns mano na boca da minha city
Você se emocionou com esse beat
Ele saiu foi em 10 minutin
Se tu quer um, joga o cash pra mim
A polivalência do artista periférico é retratada aqui como mais uma busca pelos números. O compositor da faixa é também o beatmaker, que também é quem canta, que também é quem divulga, que também é quem marca seus shows e apresentações. Fica o questionamento: quando esse/a artista vai viver sua vida pessoal, se ele/a/u literalmente vive para a arte - que, por sua vez, não tem necessariamente a ver com ascensão financeira?
Abandonado, eu me sinto sozinho
Pra amenizar, to dropando esse lean
Pro nego, a prata é a melhor companhia
Eu to morando é na joalheria
Flashes, hype... Eu só faço a pose
Mas por dentro, eu me sinto alone
Xanny, make it go away…
Please, please...
Xanny make it go away…
Na parte final da faixa, o artista demonstra como se sente quando não está sob o efeito da droga. O vislumbre do prestígio de certas pessoas, tratado no início da letra, agora não se faz mais presente ou, ao menos, não satisfaz mais. Não é suficiente. Não é pra isso o esforço. Fica nítido que o artista cai em si por um breve momento, mas logo em seguida se rende ao abuso da substância. Afinal, é muito frustrante se esforçar até o limite, dedicar tempo e energia, ser váries em um só pra, no final, dar de cara com a parede. Fica complicado continuar, dentro desse contexto, sem a alienação que a droga traz.

Conclusão
Trago esse texto como um choque de realidade acerca do que é fazer arte em ambiente periférico. Muites que só nos veem nos eventos acham que é fácil fazer o que fazemos, como se não tivéssemos que lidar com o peso da realidade no dia seguinte ou até mesmo dentro de um breve intervalo após o evento. Os mais velhos acreditam que somos do oba-oba, que somos baderneiros e que gostamos de criar caso, fazer arruaça.
Ribeiro e Nascimento (2020)[1] alertam para a importância de um olhar mais cuidadoso acerca de questões sociais no contexto da dependência química / abuso de substâncias (lícitas ou não). A política em torno destas questões segue tendo um viés segregativo, de modo a limitar os acessos de tais pessoas à sociedade com o objetivo de ressociabilizá-las. Parece contraditório (e é), mas além disso segue as linhas de uma política de punição, não se preocupando em lidar com a questão e suas reverberações: O importante é esconder essas pessoas, não procurar ajudá-las.
Xanny nos ajuda a entender o que se passa na cabeça de alguém que sofre com essa questão, e nos mostra que, apesar de qualquer pessoa estar suscetível a isso, sabemos bem quem mais passa por situações que nos derrubam nessa direção.

[1] RIBEIRO, Cynara Teixeira; NASCIMENTO, Zaeth Aguiar do. Racismo, Violência e a Questão Das Drogas No Brasil: Faces da Segregação. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 20, n. spe2, p. 1-12, 2020. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692020000500006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 05 jul. 2024. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iesp2.e8975.
Na baixada há artistas incríveis, mas a busca pelo reconhecimento da sua arte acaba trazendo um pouco da frustração quando se não recebe o merecido valor. Parabéns ao artista incrível e pela matéria extremamente necessária.