Como o baixadense se enxerga? - pt. 5
Tava demorando (pros meus padrões, ninguém me cobrou nada não) uma análise de uma das minas que tem feito muito pela arte e cultura baixadenses. Eufena, Laizz, Adrielle Vieira e mais um montão que tão aí, cada uma em seu estilo musical, registrando como é a vivência de um baixadense, mas nesse caso com um pequeno diferencial que às vezes pode tornar tudo um pouco mais complicado: ser mulher.
Não quero reforçar aqui nenhum estereótipo machista quando digo ser "mais difícil"; a prova dessa afirmação está justamente em estarmos na QUINTA parte desse estudo e somente agora vou falar de uma música de UMA artista baixadense. É só olhar nas playlists do IDHBXD a quantidade de caras com som na pista e a quantidade de minas - o que não se traduz em número de minas no corre pra soltar uma música. A dinâmica é diferente, os produtores olham diferente pro trampo das minas, os "acordos" são "oferecidos" de maneiras diferentes,... enfim. Não preciso ser explícito, né mesmo?
No entanto, apesar desse jogo de cartas marcadas, "as mina preta tão no poder", como bem disse Valen. Existe uma força e uma energia que somente uma mulher preta e periférica conhece, que beira a alquimia de transformar chumbo em ouro e é tão destrutiva quanto criativa: basta se colocar como obstáculo em sua frente. Falando dessa energia, vamos olhar pra letra da música "Canto Dela", de Aryelle, multiartista oriunda de Nilópolis.

Um encontro, o ontem e o hoje
A liberdade de ser quem é
Vai sem medo
Não tem segredo
É como semente no chão
Floriu
O rosto da menina encantada
No rastro do tempo, que é rei.
Um pedaço de papel,
Um sorriso que rasga o céu em cor
A carta do tempo na brisa do vento
ê ô, ecoou
A música começa com um tom mais etéreo, somente com a voz de Aryelle, o que faz quem assiste ao videoclipe perder-se entre a história "cantada" e a história que o visual nos conta. Na letra, ela traz a presença do tempo, ou ainda de uma certa atemporalidade, mesmo que não saibamos ainda a que ela irá atribuir essa característica. O encontro do ontem e do hoje dá a ideia de algo ancestral, que não sabemos exatamente de onde ou como veio, mas que nos acompanha e nos envolve - tal qual a semente no chão, que floriu, ou a carta do tempo, que chega através da brisa do vento e ecoa. O eco, talvez o efeito mais conhecido de energia que vai e volta, é bastante presente no restante da música.
Um rastro de pegada no chão
A fé que ilumina é o clarão
E a coroa da nega
O sorriso é frouxo,
Na luta eu tenho é gosto
E muito fogo pra arder
Ainda abordando a ancestralidade, um rastro de pegada no chão claramente remete ao que um dia foi uma pegada, que por sua vez foi um passo (e se eu quiser forçar um pouco, um dia esse passo também foi só uma ideia). Esse rastro é o que nos é disponível em diáspora, uma vez que a forma terrível como a cultura africana foi levada para fora de África tenha dado conta de limar a maioria dos registros acerca destes traços, muitos destes sendo registros vivos que exerciam a oralidade. Hoje, esse rastro é o que guia os passos da artista segundo a música. De modo similar, a fé se põe como clarão e coroa: clarão por ser aquilo que ilumina o trajeto, permitindo enxergar com mais nitidez os rastros que foram deixados, e coroa, por ser o que reafirma a majestade, que demanda reverência e exerce o poder. Esse poder é demandado na luta, da qual logo em seguida a artista diz ter gosto. A lógica se completa, uma vez que na luta é exercido o poder da majestade, e reforçada a fé.
Ecoa, ah, ecoa
O canto dela
Afaste de ti todo mal,
Afaste de ti todo mau olhado,
Afaste de ti todo quebranto,
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Da minha visão (assumo total responsabilidade se estiver errado), o "canto dela" é justamente a energia da qual viemos falando desde o início da obra e que ainda não tinha sido devidamente nomeada. É o que ecoa, faz parte da fé que facilita o caminho e dá sentido a ele. É o que foi entoado muito lá atrás e que hoje não "retorna": é como se sempre estivesse aqui. Como se sempre fosse estar. O que ecoa e atinge Aryelle nem foi feito exclusivamente para ela, muito menos tem a pretensão de estagnar ao encontrar-se com ela, é fluido, atemporal e maior do que conseguimos enxergar.
A artista entoa o que parece ser uma reza, uma cultura que nasce fora dos ambientes urbanos e a partir de processos de sincretismo religioso entre o cristianismo e as religiões de matriz africana, buscando orientação, proteção e cura.
Eles vão dizer que você não pode
Que você não deve ser sem se valer
Mas a nossa história é outra pra quem tem tanta bagagem
É difícil se entender
Transbordou e queima como dendê
Já raiou a liberdade que vem de você
No último trecho antes dos refrões finais, Ary traz a sua parcela de contribuição para o canto que ecoa. Ela aborda pessoas - "eles" - que não só não acreditam na potência dessa energia como a invalidam, como se a "bagagem" não fosse suficiente, como se toda a história de superação e de resistência não fossem credenciais o bastante para entendermos a força e a persistência de uma mulher preta. Acontece que essa energia, esse canto é tão forte que transborda, queima, deixa marcas. É sagrado. Não existe como impedir esse fluxo de energia sem sair muito machucado no processo. Não se ponha entre uma mulher preta e seu objetivo porque, com força ou com graça, ela vai passar por cima e alcançar seu potencial. O canto ecoou, vai ecoar e ecoa, não importa o que se levante contra.

Conclusão
É uma conclusão que vai gerar mais debate (eu amo fazer isso). Existe uma questão, quase um paradoxo, no qual os padrões da sociedade não conseguem entrar no meio termo entre desconsiderar uma mulher enquanto perfeitamente capaz de viver sem um homem, e simplesmente jogar tudo em suas costas, confiando que sua potência, energia e resiliência façam com que as coisas atinjam o objetivo (geralmente a mulher não ganha os devidos créditos ao fazê-lo). Giffin[1] (2005) aborda que
qualquer tentativa de estudar as relações de gênero precisa avançar além da descrição da evolução de "diferenças culturais" (entre mulheres, ou entre mulheres e homens) e da constatação abstrata da construção social das relações de gênero, para as investigar como elementos da política econômica atual, implicadas numa dinâmica global de dominação de nações e classes sociais e de mercantilização da vida (GIFFIN, 2005, p. 10).
Entenda: não adianta nada você colocar todas as suas funcionárias mulheres para trabalharem no Dia das Mulheres e comemorar como se fosse uma conquista: você continua explorando a mão-de-obra feminina. Não adianta você dizer que "pras minas é só chegar e fazer amizade com os cria" pra se manter inteira na cena, se ao menor deslize você mesmo chama as moças de tudo quanto é nome sem nem saber da história direito enquanto passa a mão na cabeça dos seus "parças" por situações das quais você tem CERTEZA. Não adianta falar que "é só denunciar" se quando as mina vem - às vezes EM GRUPO - vocês negam voz. Não adianta de nada pagar de desconstruído falando sobre a liberdade sexual feminina, se você só chama as minas pra falar ou cantar put*ria, isso quando não é o famoso "quer participar do meu clipe não???"
O canto que é identificado pelo rastro de pegada no chão, que é clarão e coroa, que transborda, que queima como dendê é muito mais do que isso. Capaz de muito mais. Não se rende a cenários de repressão e dá um jeito de encontrar seu caminho. É resistência mas com doçura, é movimento mas com estratégia, é sagrado quando fala do que é profano aos olhos da sociedade. E ecoa.

Refs de cria:
[1] GIFFIN, Karen. A inserção dos homens nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito histórico. Ciência e Saúde Coletiva, v. 10, n. 1, p. 47-57, jan. 2005 [Acesso em: 20 mai. 2024]. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000100011.
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