Como o baixadense se enxerga? - pt. 2

A pergunta feita nessa sessão de “estudos” (não quero ser prepotente, mas não deixam de ser estudos, né?) norteia cada segundo da minha existência desde que me entendi como parte do organismo vivo que é a Baixada Fluminense. Questionar e refletir como nos enxergamos – em nós mesmos e em nossos semelhantes – é mais uma forma de pensarmos coletivamente em como reafirmar e valorizar nossos espaços e nosso território.
Como bom apreciador de arte, vez ou outra preciso me escorar nalguma obra artística pra suportar a correria dos dias, e como bom apreciador de música baixadense, por MUITAS dessas vezes são artistas baixadenses que ocupam meus fones de ouvido pra me dar forças, alguns que já passaram pelo Ideias de Hermes Podcast, outrxs que ainda não. Mas sempre pessoas com as quais eu já troquei alguma ideia sobre o que a arte e a cultura pode fazer pelo nosso território – presente e futuro.
Já falei isso com ele quinhentas vezes, de tempos em tempos o álbum que toca on repeat nas minhs playlists é o álbum “O Dever Me Chama”, do Dudu de Morro Agudo, datado de 2018. E pra esse texto eu escolhi a faixa “João”.

“Certo dia o João me falou que a vida não é dedilhada
Não é conto de fada.
A vida é quebrada mano, quebrada.
Então o João me disse que só tem duas certezas na vida:
Uma é que ele vai morrer,
E a outra que ele vai morrer pobre.
Porra, João...
Por quê que cê não se revolta, João?”
Todo mundo tem aquele amigo que se vê tão cansado da rotina que, apesar de se incomodar com o que acontece, tal qual João dizendo que a vida é quebrada (não só a “quebrada” como ambiente, mas como algo que não está funcionando da forma mais eficiente possível), não se vê capaz de mudar alguma coisa. Isso fica nítido ao identificarmos que ele diz que “a vida” de um modo geral, não “sua” vida, é/está quebrada. Enquanto, na última análise, o interlocutor se colocava como quem sabe o que é e a potência que tem, nessa o amigo se mostra impotente por não saber de sua potência. Porém isso muda, graças ao eu lírico que dá o famoso “papo de amigo”:
“Por que que cê’ não se revolta quando olha em volta?
Por que que isso não te revolta?
Sabendo que os caras tão ricos e mais perto de rico
Que eu fico é pra fazer escolta
Eu sei que não dá pra sorrir,
Não dá pra fingir
A meta é ser fora da lei
você vai ser bem mais feliz se fizer o que eu fiz
e um dia souber o que eu sei.”
A potência que parece faltar, num primeiro momento, na percepção de João é posta em xeque com uma rajada de rimas, que pra quem ouve a obra, percebe que a entonação usada é a de quem passa muita informação de uma vez só. Há uma urgência, por parte do eu lírico, pra que seu amigo se desperte e se revolte – não necessariamente de forma pacífica – contra o sistema que o oprime e que deixa a vida “quebrada”.
“A vida vai ser bem melhor, vai ser bem maior
Você vai sentir o amor
É assim que vive, livre
Não prive, motive alegria, por favor
Do jeito que tá vai ficar, isso não vai mudar
Se você não sair do lugar
O povo trabalha igual louco, passando sufoco
Rezando pra se aposentar”
A revolta traz a esperança da mudança, não porque só sabemos viver em conflito, mas porque já entendemos que a apatia e se entregar à situação não “conserta” a vida “quebrada”. Há um chamamento não para o conflito, a briga, a confusão; mas para o movimento, a saída da inércia, a tomada de atitude acerca do problema. É importante apontar essa parte, porque direto a gente tem nosso discurso sendo distorcido como um discurso escandaloso e violento, quando na realidade não é isso o que acontece: o que existem são discursos de reação à(s) violência(s) sofrida(s) pelo povo periférico (e, nesse caso, baixadense), que pode ou não se tornar um discurso violento caso a argumentação não seja suficiente pra combatê-la(s).
“Há!! Faça-me o favor,
Tanto caô que vem do “Senhor”
Quem que botou ele lá?
Por que ele tá lá?
É hora do povo compor
Que seja no voto ou na bala, sim,
Porque esse é o início do fim
Cada um tá fazendo sua parte
e agora o João acordou e acendeu o estopim.
Que bom que cê’ tá revoltado, João!”

O questionamento é feito e respondido na mesma estrofe: se o “caô” vem do senhor, quem o colocou lá? O povo. Por que ele está lá? Para servir a esse povo. Então, nesse caso, é hora de o povo compor sua própria história. Trazemos para nossas mãos um poder que não deveria ter saído delas: o poder de escrever nossas próprias histórias e seguirmos, com o mínimo de conforto e dignidade, nossas trajetórias profissionais, acadêmicas e nosso convívio social.
Conclusão
“O início do fim” não parece ser o fim de tudo, e sim o fim do regime que nos intimida, nos explora, nos descarta e nos mata todos os dias. O estopim aceso por João pode ser sim entendido como algo material, mas parece mais coerente enxergar como a chave que precisava virar em seu entendimento sobre a vida e o que permite tomar o controle de seu próprio caminho.
João acordou e acendeu o estopim. O que faremos, nós, então? Acompanhamos João em sua nova caminhada ou ficaremos como no início da obra, reclamando de como a vida é quebrada?
Que a chama do estopim de João nos desperte pro movimento e nos dê foco para continuar no que precisamos todos os dias.
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