Como o baixadense se enxerga? – pt. 1

Agora que a gente já começou uma conversa maneira sobre identidade(s) baixadense(s), fica a pergunta: Como o povo baixadense se enxerga? Como estamos localizados dentro de nossas questões e até que ponto estamos certos em nossa visão sobre nós mesmos – não individualmente, mas do coletivo olhando para o coletivo?
Pra falar com mais propriedade sobre esse assunto, decidi trazer algumas representações artísticas originárias da Baixada Fluminense, pra gente conseguir trazer pro debate como o baixadense não só se representa, mas como entende essa representação e os processos relacionados a ela. Stuart Hall[1] aborda que o tempo e o espaço são, entre outras coisas, coordenadas básicas de todos os sistemas de representação – escrita, pintura, desenho, fotografia etc. Pensando por esse lado, como nos representamos, coletiva ou individualmente, parte necessariamente de um ponto de vista temporal e espacial e traduz o que recebemos como estímulo do ambiente no qual estamos inseridos.
Essa semana vamos olhar juntos pra música "Abismo", do Sarda MC com participação do R.Diop e do Dédalo MC, artistas originários de São João de Meriti. A track faz parte do álbum “Preto Sem Camisa”, de 2021. Os primeiros versos foram escritos e são cantados pelo R.Diop.

“Acordei puto e com as neurose’ de uma noite em claro
Bebi demais, fumei demais, até liguei pra Claro
Escondendo tudo que eu sinto no fumê do carro
Mas quando a morte me acompanha, o vidro sempre embaça”
Logo de cara a gente bate de frente com um eu lírico que não se sente pronto, capaz ou seguro o suficiente pra expor o que sente, talvez, pelo contexto apresentado no álbum até aqui e que se seguirá pela faixa, por não querer demonstrar vulnerabilidade. São diversas – e um pouco óbvias – as questões que levam a esse comportamento, mas voltaremos nelas mais tarde.
“Parei de tentar canetar umas canções de amor
Antes de encher teu ego, eu quero a geladeira cheia”
Existe sempre um conflito quando quem mora na periferia começa a fazer arte: atender às expectativas do mercado e fazer dinheiro, ou atender às minhas próprias expectativas em relação à minha arte? O “tentar canetar umas canções de amor” pressupõe tentativa seguida de fracasso, porém o verso seguinte justifica a questão de prioridade: antes de atender às suas expectativas, quero atender às minhas.
“Querem minha cabeça e me dar uma coroa de flor
Bem que meu santo avisou que ela né flor que se cheira”
Culturalmente – e sem precisar de muita reflexão pra identificar a questão – não é esperado do povo preto e periférico lugar de destaque. Atingir este lugar de destaque exige, entre outras coisas, tempo para dedicar-se ao ramo/área de atuação, tempo este que nos é retirado devido às necessidades imediatas de nossas realidades. Isto posto, conseguimos entender quem é que quer a cabeça e coroa de flores do artista preto e periférico.
“De onde eu venho, é crime, droga e umas pipa’ no alto
De cara pro gol com a fome, vai pra boca e se consagra
Dia de baile no pinote, rabiscando o asfalto
VAR não funciona quando é preto caindo na área”
Esse verso grifado não precisa de explicações.
Pra quem não está familiarizado com o futebol, o VAR – sigla em inglês para Árbitro Assistente de Vídeo (Video Assistant Referee) – é o equipamento que verifica em vídeo as jogadas pra saber se aconteceu alguma infração ou não.
A “penalidade máxima” no futebol é marcada, entre outras situações, quando algum jogador do time que ataca é derrubado intencionalmente dentro de sua área de ataque por algum jogador do time que está defendendo.
Porém....
Este mecanismo de vigilância que deveria contribuir para a lisura e honestidade dos processos não funciona quando é um corpo preto a ser derrubado. Curioso, não?
Aqui, uma parte do refrão, composto e cantado pelo Sarda:
“A solução ‘é nós’
O problema ‘é nós’
‘Nós é’ o controle de tudo
Temo’ a força pra poder mudar e mover essa porra de mundo
Somos o amor, o ódio, a guerra e a paz
Tranquilidade de tudo
Assumindo o risco, seguimos sem falha
Monstro da Baixada, KTZ, vagabundo”
Somos muita coisa. Somos paz pra quem nos proporciona paz. Oferecemos segurança a quem nos deixa seguros. Somos escândalo quando pensam que somos inferiores, pois fazemos questão de fazer ouvir nossas vozes e sentir nossas presenças. Somos o controle, pois a maior parte da mão de obra de toda a Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro nos últimos 23 anos tem sido originária da Baixada Fluminense. Se a gente parar, o Rio inteiro para. Somos o amor e o ódio, a guerra e a paz.
Mais um trecho, desta vez composto e cantado pelo Dédalo:
“Noites escuras trazem luz, e eu nunca quis ser claro
Me tromba à noite e tu verás que os meus olhos brilham
Falar de crime eu tô cansado, essa porra é gatilho
Viver de arte já foi sonho, hoje é só martírio”
Não querer ser claro remete a ser contrário a um movimento de apagamento cultural, preservando, reconhecendo e ressaltando suas raízes de cor, com sua cultura, costumes e ideologias, apesar da tentativa de domínio que veio da Europa em direção ao nosso continente. Este genocídio cultural vivenciado nos ambientes periféricos tem sua proto-versão justamente na invasão dos povos europeus ao redor do mundo, processo conhecido carinhosamente como “Colonização”.

Longe de ter o intuito de terminar alguma reflexão, acho essa faixa ótima pra debater como a gente – não só baixadense, mas ser humano – se entende de formas plurais, que num primeiro momento parecem ser contraditórias, mas que de uma forma ou de outra sempre foi uma forma genuína de representar o que somos: baixadenses.
Se nos vemos como amor ou ódio, guerra ou paz; se nos entendemos como possíveis vítimas de violência à nossa identidade ou se não a vislumbramos por completo; seja como for: Estaremos atravessados por nosso território e o nosso agora.
Cuidemos de nós. Coletivamente, eu digo.
Pra que mais de nós possam fazer o que fazemos.

[1] HALL, Stuart. Globalização. As identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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